Autor: Francisco Caruso
Leite Lopes era, sobretudo, um homem apaixonado, movido por um apurado senso ético e estético. Acreditamos não ser possível separar o ser humano de sua atividade profissional e Leite, portanto, deixava essa sua paixão transbordar também na Física que fazia, sem perder nunca de vista a dimensão social do cientista.
Com as mãos trêmulas te construímos,
Átomo sobre átomo as tuas torres elevamos,
Mas quem te poderá completar,
Ó Catedral.
Rainer Maria Rilke
LEITE LOPES (1918-2006) era, sobretudo, um homem apaixonado, movido por um apurado senso ético e estético. Segundo ele próprio (CARUSO, 1999)
“a paixão é um movimento violento por alguma coisa que você admira, ama, deseja e quer para você só, isso é a paixão”.
Acreditamos não ser possível separar o ser humano de sua atividade profissional e Leite, portanto, deixava essa sua paixão transbordar também na Física que fazia, sem perder nunca de vista a dimensão social do cientista.
As mulheres...
É difícil, para aqueles que conviveram de perto com Leite Lopes, recordá-lo sem mencionar o quanto sua paixão pela vida, pela Física, pelas simetrias e sua paixão pelas mulheres e por sua beleza, eram imbricadas. Em suas palavras (CARUSO, 1999),
“Se ele [Deus] criou coisa melhor que a mulher, ele escondeu dos homens e guardou para ele próprio (...).”
“A mulher é o que há de mais bonito no Universo! Depois vêm as outras belezas: a beleza da Ciência, das Artes, da Pintura, da Música (...).”
A educação...
Em 1936, logo no primeiro ano da Escola de Engenharia de Pernambuco, Leite Lopes conheceu seu grande mestre Luiz Freire, professor de Física e encantou-se pela Ciência. [LEITE LOPES, 1984].
Freire marcou aquele rapaz com seu espírito de educador de tal forma que o tempo nunca apagou essa influência, facilmente identificada em várias fases da carreira do físico. Leite direcionou suas energias em defesa do ensino em seus diversos níveis. Por exemplo, traduziu, com Jayme Tiomno, o famoso livro do Blackwood, Física na Escola Secundária. Rio de Janeiro: Ed. Fundo de Cultura, 1961. Este livro teve um papel relevante na melhoria da qualidade do ensino secundário de então. Além disto, Leite escreveu 20 livros, entre livros de texto, em diversos níveis, e outros sobre as relações entre Ciência & Sociedade (veja a seção "Obras"). Nas imagens a seguir ilustramos a evolução de suas abordagens didáticas da Física Moderna.
Livros
Há que se destacar também sua luta pela implantação do tempo integral na Universidade brasileira. Durante toda sua carreira universitária, iniciada em 1946, aos 27 anos, com sua nomeação como Professor de Física Teórica e Superior da Faculdade Nacional de Filosofia (Rio de Janeiro), Leite sempre esteve preocupado com a qualidade da formação dos alunos. Foi, vale lembrar, o primeiro coordenador do Instituto de Física da Universidade de Brasília, criada para ser uma Universidade modelo no País.
Já em sua maturidade, retomou suas preocupações com o compromisso que os pesquisadores deveriam ter com relação à Educação em geral. Segundo ele,
“Os cientistas atualmente têm que se preocupar com o problema da educação básica e não podem ficar em seus castelos de marfim. Eles devem dedicar algumas horas por mês (...) e entrar em contato ou fazer com que os colégios secundários ou professores os convidem para dar palestras sobre os últimos avanços da Ciência, como eu fiz. Isso é uma obrigação das Universidades.”
Como conseqüência prática dessa sua convicção, foi o idealizador do Projeto SBPC vai à Escola (Rio), no qual um grupo de pesquisadores se dispunham a ir às Escolas divulgar seu trabalho, procurando despertar nos jovens o gosto pela Ciência.
No final da década de 1950, Leite Lopes teve importante papel na consolidação e institucionalização da Física na América Latina, tendo participado do movimento que criou a Escola Latino-Americana de Física.
Sugeriu ainda ao Ministério das Relações Exteriores e à UNESCO a criação de um Centro Latino-Americano de Física, o CLAF, que foi criado em 26 de março de 1962, em reunião promovida pela UNESCO e pelo Governo Brasileiro, no Rio de Janeiro, com a participação de vinte países latino-americanos. Firmaram o acordo que instituiu o CLAF: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
Depois de Freire, talvez Mario Schenberg tenha sido a pessoa que mais influenciou Leite em sua juventude. Foi Shenberg que sugeriu a ele o problema do elétron clássico como tema de investigação científica e, de certo modo, este foi um tema que acompanhou Leite em vários momentos de sua atividade científica.
Leite doutorou-se em Princeton com Wolfgang Pauli e, cerca de uma década depois, trabalhou com Richard Feynman, ambos prêmios Nobel de Física. Com base em seu curriculum vitae, Leite teve 14 orientandos: A. Kalnay (1961), Mário Novello (1968), Sérgio Joffily (1969), J.D.M. Vianna (1969), N. Rohr da Silva (1969), Norbert Fleury (1973), B. Fernandes (1974), A. Bilodeau (1977), J. Simons (1977), Christos Ragiadakos (1979), Dominique Spehler (1979), J.L. Jacquot (1979), José Antônio Martins Simões (1981), Maria Beatriz de Leone Gay Ducati.
Entre 1955 e 1964, foi Diretor da Divisão de Ciências Físicas do Conselho Nacional de Pesquisas. Nos anos de 1956 e 1957, a convite de Richard Feynman, foi Pesquisador Visitante no California Institute of Technology. Ocupou vários cargos de chefia e de administração científica no CBPF (1960-1964, 1986-1989), no CNPq e na Universidade do Brasil. Durante todo esse tempo, Leite teve uma enorme preocupação em criar condições favoráveis à formação de novos físicos no Brasil.
A ciência...
Em 1958, publicou a primeira avaliação correta da massa dos bósons vetoriais na prestigiosa revista Nuclear Physics em um artigo intitulado “A Model of the Universal Fermi Interaction”. Nele, Leite apresenta a hipótese de que existiria uma partícula neutra mediadora das interações fracas 40 a 60 vezes mais pesada do que o próton.
A conjectura de Leite Lopes - orientada pela busca da beleza nas leis da Natureza - estava muito além de seu tempo e foi um passo importante para a unificação das forças eletrofracas.
Na Escola Latino-Americana de Física de 1960 (Rio) Yang discordou de Leite Lopes, insistindo que a massa do bóson intermediário deveria ser da ordem de 1 GeV (Apud LEITE LOPES, 2000, p. 61). Mais tarde, nos seus Selected Papers, Yang reconhece a importância do trabalho de Leite, quando escreve: Lopes’ paper is particularly interesting from today’s viewpoint, but it was hardly noticed at that time [YANG, 1983, p. 47].
A contribuição de J.L.L. foi lembrada por Steven Weinberg por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel, em 1979 [WEINBERG, S., 1979].
Em uma interessante palestra oferecida na Sessão A da Lishep de 1995, intitulada “Sobre os bósons pesados e a existência do bóson neutro”, Leite dá um impressionante depoimento, de coração aberto, sobre suas motivações e receios ao escrever o artigo de 1958 (LEITE LOPES, 2000, p. 59-65).
Em sua vasta obra científica, Leite Lopes teve muitos interesses, dos quais destacam-se o estudo do elétron e suas interações (tema que lhe foi sugerido por Mario Schenberg no início de sua carreira) e a tentativa de unificar as interações fracas e eletromagnéticas.
Uma inspeção rápida das publicações de Leite Lopes nos permite destacar que os assuntos sobre os quais mais trabalhou foram: a unificação da forças eletromagnéticas e fracas; as teoria das forças nucleares; as reações fotonucleares; a teoria de Weinberg-Salam com lépton neutro pesado e violação da conservação do número muônico; Modelo de estrutura de léptons; estudos sobre possíveis léptons e quarks com spin 3/2, sem falar no tema Ciência & Sociedade que permeia toda a sua carreira, destacando-se o papel da Ciência no Desenvolvimento dos Países do Terceiro Mundo.
Reconhecimento...
O reconhecimento acadêmico de sua obra é evidente pelos títulos honoríficos concedidos por cinco instituições e prêmios colecionados ao longo da vida, a saber:
• Medalha do Jubileu da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência, por serviços prestados à Ciência no Brasil (1973).
• Medalha do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, por ocasião do 30º aniversário dessa instituição (1981).
• Prêmio Estácio de Sá de Ciência do Governo do Estado do Rio de Janeiro (1985).
• Ordem do Rio Branco, no grau de Grande Oficial (1985).
• Medalha da Universidade Louis Pasteur, Strasbourg, França (1986).
• Medalha Carneiro Felippe da Comissão Nacional de Energia Nuclear (1986).
• Medalha de Ouro e o Prêmio Nacional de Ciência Álvaro Alberto (1989).
• Ordre des Palmes Academiques, pelo Primeiro Ministro da França, grau de Officier (1989).
• Ordre National du Mérite, pelo Presidente François Miterrand, grau de Officier (1989).
• Prêmio México de Ciência e Tecnologia para a América Latina (1993).
• Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (1994).
• Prêmio de Ciência da UNESCO, na Conferência Mundial sobre Ciência, Budapeste (1999).
A pintura...
Leite Lopes dizia que precisava pintar pois precisava fazer as mãos trabalharem também junto com o cérebro. Pintou dezenas de quadros a óleo e fez muitos desenhos. Um de seus temas favoritos era “A Catedral em chamas de Strasbourg”. Pintou vários temas religiosos, além de quadros abstratos. Quando completou 80 anos, Mirian de Carvalho (crítica de Arte) e eu organizamos uma exposição com cerca de 30 obras de JLL no Iate Club do Rio de Janeiro, inaugurada no dia do jantar comemorativo de seu aniversário;
Entretanto, a verdadeira dimensão da perda de nosso saudoso Leite Lopes não está no que foi dito até aqui. Lembrei-me, então, das palavras de Icilio Guareschi, a propósito do grande Amedeo Avogadro:
“os grandes méritos de um homem não devem tanto ser medidos pelo valor intrínseco de sua obra, quanto pela influência que tiveram sobre seus contemporâneos e, sobretudo, sobre o futuro da ciência”.
É essa a real dimensão dos grandes cientistas e é ela, no fundo, que nos fará sentir muita falta desse grande protagonista da cultura brasileira.
Leite Lopes dedicou toda a sua vida à criação de um ambiente propício ao desenvolvimento científico no Brasil e à criação de um país mais justo, muitas vezes opondo-se ao poder de forma contundente, sem perder a esperança no futuro. Em uma entrevista, gravada em um vídeo feito pela Faperj (talvez a última dada por Leite), referindo-se ao clima que permeia o cenário científico no Brasil, Leite, com toda sua experiência e teimosia típica dos apaixonados disse:
“Um dia, esse clima de desconfiança e desestímulo vai desaparecer.” J.l.l. (2006).
Referências:
Para ler mais...
N. Fleury, J.A. Martins Simões, S. Joffily and A.Troper (Eds.) Leite Lopes Festschrift. Singapore: World Scientific, 1988.
F. Caruso (Org.) José Leite Lopes: Idéias e Paixões. Rio de Janeiro: CBPF, 1999.
José Leite Lopes, Unificando as Forças da Natureza (entrevistado por Jesus de Paula Assis). São Paulo: Editora UNESP, 2001.
José Leite Lopes, Uma história da Física no Brasil (apresentação e organização de Amélia Império Hamburger). São Paulo: Livraria da Física, 2004.
Para ver mais...
Capa: Cientistas BrasileirosO leitor pode assistir ao documentário do cineasta José Mariani, Cientistas Brasileiros, Produtora Andaluz (2002), e também o vídeo da Série Cientistas Fluminenses, sobre José Leite Lopes, produzido pela SECTI-RJ com apoio da FAPERJ, programado para ser distribuído gratuitamente a todas as escolas do Rio de Janeiro.
Referências bibliográficas
BASSALO, J.M.F.; CARUSO, F. “José Leite Lopes: um apaixonado de dois mundos”. In: Scientiarum Historia II, 2009, Rio de Janeiro. Anais do Congresso Scientiarum Historia II: Encontro Luso-Brasileiro de História da Ciência. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. v. 1. p. 523-528.
CARUSO, F. (Editor), 1999. José Leite Lopes: Idéias e Paixões. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, CBPF.
CARUSO, F. “Saudações a José Leite Lopes”, http://www.cbpf.br/LeiteLopes/, acessado em 25 de novembro de 2010.
DE CARVALHO, Mirian & CARUSO, Francisco (Curadoria, Arte Gráfica e Edição), 1998. José Leite Lopes: Espaços da Catedral Imaginária. Rio de Janeiro, Iate Clube do Rio de Janeiro.
LEITE LOPES, José, 1984. “Luiz Freire e os valores superiores da vida do espírito”, Ciência & Sociedade CBPF 06/84. Reproduzido em CARUSO & TROPER (Editores), 1997. Perfis, Rio de Janeiro, CBPF/CNPq, p. 9-15.
LEITE LOPES, José, 2000. “Sobre os bósons pesados e a existência do bóson neutro” in ALVES, Gilvan; CARUSO, Francisco; MOTTA, Hélio & SANTORO, Alberto (Editores), O Mundo das Partículas de Hoje e de Ontem. Rio de Janeiro: CBPF, p. 59-65.
YANG, Chen Ning, 1983. Selected Papers 1945-1980 With Commentary. San Francisco: W.H. Freeman.
WEINBERG, S., 1979. Nobel Lecture. http://nobelprize.org/nobel_prizes/physics/laureates/1979/weinberg-lecture.pdf